Introdução
Existem momentos em que o mundo se aquieta. Em que a imensidão do mar respira profundamente antes de se erguer em uma parede líquida colossal, desafiando os céus e a própria gravidade. É nesse instante suspenso no tempo que uma mulher, sobre sua prancha, encara a vastidão com olhos firmes e coração acelerado. Cada célula do seu corpo desperta, cada batida do seu peito ecoa o compasso das ondas, e o ar — rarefeito e salgado — carrega a promessa de algo grandioso: a transcendência dos próprios limites.
O surf de ondas gigantes não é apenas um esporte. É um rito silencioso de coragem. Um chamado ancestral que poucas almas ousam responder. Não se trata de domar o oceano — algo impossível para qualquer ser humano —, mas de se integrar a ele, de aceitar seu poder avassalador e ainda assim escolher avançar. De mergulhar na incerteza, não para vencê-la, mas para dançar com ela, para se tornar parte da sua fúria e da sua graça.
Cada sessão nas águas profundas é um mergulho dentro de si mesma. É o momento em que o medo não é anulado, mas acolhido. Quando a força física e a técnica se unem à entrega total, criando um estado de presença absoluta, onde passado e futuro se desfazem e só existe o agora: a remada decidida, o drop vertiginoso, a descida pelo rosto da onda como quem caminha entre mundos.
Para as mulheres que desafiam essas montanhas líquidas, o oceano não é obstáculo, é aliado. Cada gota d’água é um lembrete do próprio poder, da própria liberdade. Ali, no azul sem fim, longe da terra firme e de todas as certezas, nasce uma nova narrativa: a de que limites são apenas pontos de partida para quem tem a coragem de sonhar grande, respirar fundo e seguir em frente — mesmo quando tudo ao redor parece querer derrubá-las.
Surfando ondas que podem chegar a mais de 20 metros de altura, essas mulheres não desafiam apenas a natureza; desafiam expectativas silenciosas, rompem invisíveis amarras e provam que paixão, resiliência e técnica formam a verdadeira força capaz de atravessar oceanos — e a própria alma.
É sobre essa paixão sem fronteiras, essa técnica refinada e essa superação diária que falaremos aqui. Um tributo às mulheres que escrevem, sobre as águas, histórias que o mundo nunca esquecerá.
O Surgimento das Mulheres nas Ondas Gigantes
O mar sempre foi um convite silencioso para a ousadia. Desde os primeiros relatos sobre a prática do surf, nas praias sagradas do Havaí, até os dias atuais, as águas têm atraído almas aventureiras que encontram nas ondas não apenas diversão, mas um chamado interior — um convite para viver de forma plena, intensa e verdadeira.
E foi seguindo esse chamado que, ao longo dos anos, cada vez mais mulheres começaram a se lançar às águas profundas. Não por revolta, nem por necessidade de provar algo a alguém, mas pela simples e poderosa razão de que o oceano também as convocava. O amor pelo mar, pelo movimento, pela liberdade, nasceu em seus corações da mesma maneira que em qualquer surfista: como um sussurro irresistível vindo das entranhas do mundo azul.
Inicialmente, as mulheres trilharam seus caminhos nas ondas menores, desenvolvendo técnica, sensibilidade e conexão ímpar com o mar. A cada prancha içada, a cada remada vencida contra a arrebentação, a cada drop bem-sucedido, o horizonte parecia se expandir. Não demorou muito para que esse mesmo espírito inquieto olhasse além das ondas comuns e começasse a desejar o próximo desafio: aquelas paredes gigantescas de água que poucos ousavam enfrentar.
Assim, de forma orgânica e apaixonada, mulheres começaram a se preparar para o surf de ondas grandes. O crescimento foi natural, alimentado por treinamentos mais específicos, novas tecnologias de equipamentos e a coragem inata de quem se recusa a limitar os próprios sonhos.
O que se viu nas últimas duas décadas foi uma verdadeira revolução silenciosa. Sem alarde, sem promessas, sem manifestos, elas foram chegando — primeiro poucas, depois muitas — e ocupando o lineup das ondas mais temidas do mundo. Com disciplina, estudo e uma profunda reverência pela força da natureza, aperfeiçoaram técnicas de remada em ondas pesadas, aprimoraram habilidades de leitura do oceano e mergulharam em rotinas de condicionamento físico antes reservadas apenas aos mais experientes.
O surf de ondas gigantes exige mais do que coragem: exige preparo quase sobre-humano. E foi exatamente nesse território extremo que as mulheres mostraram uma das suas maiores virtudes: a resiliência. Cada wipeout sofrido, cada queda violentamente engolida pela espuma revolta, foi encarada como aprendizado. Cada nova onda vencida se tornou uma declaração silenciosa de amor à própria jornada.
Hoje, é comum ver mulheres ao lado dos maiores nomes do big wave surfing, dividindo o mar e a glória nos mais respeitados picos do planeta. Elas surgem não como exceção, mas como parte essencial da narrativa moderna do surf de ondas grandes. Equipadas com pranchas desenvolvidas especialmente para a velocidade e estabilidade necessárias, usando coletes de segurança de última geração e treinando técnicas de respiração que aumentam a resistência em situações extremas, essas atletas não apenas participam — elas redefinem o esporte.
O surgimento das mulheres no surf de ondas gigantes não é um movimento forçado ou reativo. É uma história de amor profundo pelo oceano. Uma história escrita a cada drop ousado, a cada momento em que o horizonte se eleva na forma de uma muralha de água, e uma mulher, serena e destemida, decide remar em direção ao desconhecido.
É a história da paixão que ignora barreiras invisíveis, que floresce onde há espaço para a liberdade de ser. E nas vastas catedrais líquidas do nosso planeta, as mulheres encontraram o seu altar perfeito: as ondas gigantes, onde coragem e alma se misturam e se eternizam em cada espuma que dança sob o sol.
Perfil Inspirador: Maya Gabeira
Em meio ao rugido estrondoso do Atlântico Norte, onde o céu se mistura com o mar em tons de cinza e azul profundo, uma figura pequena sobre uma prancha imensa desafia aquilo que para muitos seria impossível. Maya Gabeira, brasileira nascida no Rio de Janeiro, é hoje sinônimo de coragem, superação e excelência no surf de ondas gigantes. Sua trajetória é a prova viva de que paixão e disciplina, quando combinadas, têm o poder de reescrever limites.
Desde a infância, Maya carregava consigo uma conexão intensa com o mar. Cresceu entre as praias cariocas, onde aprendeu a respeitar e amar o oceano em sua forma mais pura e selvagem. Aos 14 anos, enquanto muitos adolescentes ainda buscavam seu caminho, ela já sabia que o surf seria mais que um hobby: seria sua missão de vida.
Determinada a viver esse sonho por inteiro, Maya se mudou para o Havaí, a meca do surf mundial. Foi ali, entre as gigantes de Oahu, que ela lapidou suas habilidades. Em pouco tempo, tornou-se conhecida não apenas por sua técnica apurada, mas principalmente pela sua dedicação inabalável aos treinos físicos e mentais. Em um esporte onde frações de segundo e centímetros podem separar a glória da tragédia, Maya construiu sua carreira com uma combinação rara de talento, disciplina e respeito absoluto pelas forças da natureza.
O marco de sua vida, no entanto, viria em Nazaré, Portugal — um pequeno vilarejo à beira do Atlântico que guarda as maiores ondas surfáveis do planeta. Foi lá, em 2013, que Maya enfrentou o que seria, ao mesmo tempo, seu maior desafio e sua maior transformação. Durante uma tentativa de surfar uma onda colossal, sofreu um acidente grave, sendo arrastada pela força brutal da água e ficando inconsciente. A imagem de seu resgate dramático correu o mundo, mas, mais importante que o acidente, foi o que veio depois: a resiliência inquebrantável.
Ao contrário do que muitos esperavam, Maya não abandonou o mar. Pelo contrário. Transformou a experiência em combustível para seu renascimento. Voltou a treinar com ainda mais intensidade, dedicando-se a técnicas de apneia, fortalecimento muscular e estudo avançado de oceanografia para entender melhor o comportamento das ondas gigantes. Com humildade e determinação, reconstruiu sua carreira onda por onda, treino por treino, até que, anos mais tarde, retornou a Nazaré para deixar sua marca na história.
Em 2020, Maya Gabeira surfou uma onda de impressionantes 22,4 metros de altura — um feito que lhe garantiu o título de maior onda surfada por uma mulher na história e seu nome cravado no Guinness World Records. Mais do que um recorde, aquela conquista representou uma celebração da resiliência humana. Uma mulher, que havia encarado o pior que o oceano poderia oferecer, retornava para conquistar, em harmonia, um dos maiores prêmios que o mar poderia conceder.
Hoje, Maya não é apenas uma surfista de ondas gigantes. Ela é uma embaixadora da coragem, uma defensora apaixonada da preservação dos oceanos e um exemplo vivo de que o verdadeiro sucesso é construído muito além das vitórias visíveis — ele nasce da capacidade de continuar remando mesmo quando tudo parece querer nos puxar para baixo.
Cada remada de Maya, cada descida em uma montanha líquida, carrega uma mensagem silenciosa para todas as pessoas que assistem: que é possível superar nossos próprios naufrágios, que a força que precisamos para enfrentar as maiores ondas da vida já habita dentro de nós, à espera apenas de um sopro de fé e muita, muita entrega.
Maya Gabeira transformou o mar em seu lar e a adversidade em sua força. E ao fazer isso, inspirou uma geração inteira de surfistas — homens e mulheres — a acreditarem que os limites existem apenas para serem transcendidos.
A Técnica e a Preparação Física no Surf de Ondas Gigantes
Diante de uma onda que se ergue como uma muralha líquida de vinte metros de altura, apenas coragem não basta. Para estar ali, remando em direção ao desconhecido, é preciso muito mais do que vontade: é preciso uma preparação minuciosa, construída dia após dia, como quem esculpe uma obra de arte na pedra bruta do próprio corpo e da mente.
O surf de ondas gigantes é uma dança com a gravidade, o tempo e o medo. Para suportar a pressão avassaladora de toneladas de água fechando sobre si, as surfistas precisam transformar seus corpos em verdadeiras máquinas de resistência e explosão. A rotina de treinos inclui exercícios específicos de apneia, para aumentar a capacidade pulmonar e suportar períodos prolongados sem respirar — muitas vezes ultrapassando três minutos sob a água em condições extremas.
A preparação física é intensa e multidisciplinar. Fortalecimento de core, treinamento funcional de agilidade, musculação para resistência de membros superiores e inferiores, sessões exaustivas de natação em mar aberto. Cada movimento é calculado para reproduzir as situações mais extremas que poderão enfrentar. Além do físico, o preparo mental é parte indissociável desse processo: técnicas de visualização, controle de ansiedade e meditação são usadas para manter a calma sob pressão.
Os equipamentos também evoluíram para acompanhar a ousadia humana. Pranchas especiais de tow-in, mais curtas e mais estáveis, foram desenvolvidas para garantir velocidade e controle em ondas gigantescas. Coletes infláveis de segurança — que podem ser acionados em situações de emergência — oferecem uma chance de ascensão rápida à superfície após uma queda. Sistemas de resgate com jet skis e rádios submersíveis são parte da engrenagem silenciosa que trabalha nos bastidores de cada grande sessão.
Mas, ainda assim, nenhuma tecnologia substitui o instinto. A intuição aguçada para ler o humor do mar, a sabedoria para esperar pela onda certa e a humildade para saber a hora de recuar continuam sendo os maiores aliados de quem desafia as forças abissais da natureza.
Perfil Inspirador: Justine Dupont — Constância e excelência nas ondas gigantes
Se Maya Gabeira é o símbolo da resiliência, Justine Dupont é a personificação da constância. A francesa, natural de Bordeaux, poderia ter seguido uma carreira confortável no surf convencional, onde já brilhava desde muito jovem. Mas seu coração inquieto pedia mais: mais desafio, mais técnica, mais profundidade.
Justine encontrou seu verdadeiro lar nas ondas gigantes de Nazaré, onde tornou-se uma das surfistas mais respeitadas — não apenas entre as mulheres, mas entre todos os big riders do mundo. Sua abordagem ao surf de ondas grandes é marcada pela meticulosidade. Não há espaço para improvisos: cada sessão é planejada com precisão militar, desde a escolha do equipamento até a análise das condições climáticas e oceanográficas.
Em 2021, Justine impressionou o mundo ao surfar algumas das maiores ondas já registradas no canhão de Nazaré, demonstrando não apenas coragem, mas uma incrível fluidez em meio ao caos de água e vento. Seu estilo é técnico, elegante e extremamente eficiente — ela parece deslizar sobre o impossível com a leveza de quem dança.
Além de suas conquistas individuais, Justine também trabalha incansavelmente para abrir caminhos para outras mulheres no surf de ondas grandes, organizando clínicas de treinamento, palestras e inspirando, pelo exemplo, uma nova geração que já enxerga as montanhas de água não como limites, mas como convites para voar.
Sua filosofia é simples e poderosa: constância vence medo. Dia após dia, treino após treino, Justine construiu uma história de excelência que hoje ressoa em cada gota de água que a vê passar sobre seu rosto.
Destinos Icônicos para Surf de Ondas Gigantes no Mundo e no Brasil
A busca pelas maiores ondas do planeta levou as mulheres a destinos que misturam beleza crua, perigo latente e desafio técnico. Cada local carrega uma aura mística, histórias de façanhas épicas e um respeito profundo pelos que ousam enfrentá-los.
Em Nazaré, Portugal, as ondas formadas pelo gigantesco cânion submarino desafiam a lógica. Ali, o Oceano Atlântico desenha seus maiores monstros, e surfistas como Maya Gabeira e Justine Dupont escreveram capítulos gloriosos da história recente do surf.
No Havaí, mais precisamente em Jaws (Peahi), em Maui, o espírito ancestral do surf pulsa forte. O recife de coral escondido nas profundezas projeta paredes perfeitas de água azul, exigindo não apenas técnica refinada, mas também uma coragem quase espiritual para se lançar no abismo líquido.
Na Califórnia, Mavericks ostenta um cenário quase cinematográfico: águas geladas, rochedos traiçoeiros e ondas que podem ultrapassar os 18 metros. É um local onde apenas os surfistas mais preparados ousam desafiar o imprevisível.
Do outro lado do mundo, na remota Tasmânia, Shipstern Bluff oferece uma visão surreal: ondas monstruosas adornadas por degraus naturais formados pelo recife irregular. Surfá-las é um espetáculo de adaptação e bravura.
No Brasil, as ondas grandes não chegam a competir em altura com as de Nazaré, mas ainda assim oferecem desafios respeitáveis. Em Itacoatiara, Niterói (RJ), ondas pesadas e tubulares atraem big riders que querem aperfeiçoar suas habilidades em condições extremas. Já na Praia do Norte, em Conceição da Barra (ES), os ventos de inverno podem produzir ondulações poderosas, servindo de campo de treinamento natural para surfistas em busca de aperfeiçoamento técnico.
Cada um desses destinos é um santuário onde as surfistas não apenas testam seus limites, mas se reencontram consigo mesmas em cada gota salgada que toca suas peles e corações.
O Futuro do Surf Feminino em Ondas Gigantes
O horizonte que se desenha para o surf feminino de ondas gigantes é vasto e brilhante. Com mais investimentos em infraestrutura, desenvolvimento de equipamentos sob medida e a criação de competições exclusivas para mulheres — como as categorias femininas do Big Wave World Tour —, as possibilidades estão se expandindo como nunca antes.
Novos talentos surgem nas águas do mundo, inspiradas pelas gigantes que pavimentaram o caminho. Surfistas como Michelle des Bouillons, do Brasil, e Paige Alms, do Havaí, já despontam como nomes que continuarão a elevar o nível técnico e inspirar futuras gerações.
A mensagem que ecoa nas praias, nos campeonatos e nas redes sociais é clara: o surf de ondas gigantes não é uma questão de gênero. É uma questão de paixão, preparo e desejo genuíno de viver experiências profundas e autênticas no coração do oceano.
“O futuro pertence a todas que tiverem a coragem de ouvir o chamado da onda e remar em sua direção.” Maya Gabeira
Conclusão
A Grandeza Não Está em Vencer o Mar
Nas águas profundas onde o mundo se desfaz em azul e silêncio, as surfistas de ondas gigantes nos ensinam a lição mais poderosa: que a grandeza não está em vencer o mar, mas em se fundir a ele. Cada remada contra a corrente, cada drop em direção ao abismo, cada momento de imersão sob toneladas de água não são apenas atos de bravura física — são declarações silenciosas de liberdade, de entrega absoluta ao presente e de celebração da vida em seu estado mais puro.
O oceano não aceita máscaras, títulos ou vaidades. Diante dele, somos todos apenas respiração, batimento e desejo. E é nesse encontro honesto que nascem as histórias mais verdadeiras, como as das mulheres que fizeram do surf de ondas gigantes uma extensão da própria alma.
Que cada onda surfada, cada muralha vencida, cada novo horizonte alcançado seja também um convite para todos nós: o convite para viver com mais coragem, com mais paixão e com mais amor pelo infinito que habita dentro de nós.